Enquadramento: este texto é o meu contributo para o excelente livro "O Papel do Líder na Transformação Digital" com artigos de opinião e entrevistas realizadas por Anabela Chastre)
A primeira coisa que digo nas minhas palestras, aulas,
eventos, reuniões, encontros pessoais, ou outro tipo de relação interpessoal,
quando o tema da Transformação Digital surge no debate, é dizer o que não é.
E Transformação Digital não é a digitalização do papel!
E ao longo dos meus 20 anos de atividade empresarial, onde
estive envolvido em vários projetos de digitalização do papel, em particular na
primeira parte desta minha (ainda) curta carreira profissional, vi muita
digitalização acontecer e com ganhos de eficiência na empresa bastante baixos e
com utilizadores sem entender as razões daquele projeto.
Sou um filho da revolução, por isso um exemplar da fase
final da Geração X, que viveu o nascimento do computador pessoal como uma
revolução (e uma festa) ao vê-lo entrar em casa (ainda me lembro da marca do
meu primeiro PC) e que viveu o Timex 2048 ou o ZX Spectrum como o espetáculo de
jogos eletrónicos. Sou aquele que agora tem em casa 4 filhos, 2 adolescentes e
2 na sua pré-infância escolar, onde os mais velhos já não esperam pela hora da
novela do Roque Santeiro ou dos Jogos Sem Fronteiras, e muito menos estão um
dia inteiro a ver o Natal dos Hospitais, pois veem a sua série quando quiserem
no Netflix ou jogam FortNite na consola online e ouvem/veem os seus artistas em
Podcast ou no Youtube. Já as mais novas usam (ainda) o iPad para verem o
Youtube ou o Panda, usam a TV (ainda sem “touch”, com muita pena delas, dada a
quantidade de toques que dão no ecrã), não para ver aos sábados ou domingos às
8h da manhã a Heidi ou o “Rui o pequeno Cid”, mas para facilmente também
escolherem o seu perfil no Netflix e verem a Peppa Pig ou as Winx, ou verem na
app Youtube da TV a Shakira ou a Beyoncé. Enfim, uma casa decorada pela Geração
X, onde vive a Geração Z (1990-2010) e a nova Geração Alpha (pos-2010).
Isto é, sou de uma geração que viveu no analógico, vive no
consumo digital e viverá a introdução da robotização no dia-a-dia do comum
cidadão. Em termos práticos a aceleração de processos humanos está a ter uma
velocidade brutal, onde tudo é mais rápido a aparecer e a desaparecer, onde os
desafios da educação e “apreendizagem” são maiores, tornando difícil o
acompanhar desta aceleração por uma grande parte da população, pela inaptidão
às tecnologias ou infoexclusão.
Esta é parte da transformação digital na comunidade dos
indivíduos em Portugal, e no mundo, onde por qualquer coisa, e qualquer razão,
o gesto de “pegar no telemóvel” para simplesmente obter informações é já um
gesto nativo do ser humano. Isto é, a maturidade das tecnologias fez com que o
próprio individuo transformasse a sua relação individual e de grupo num efeito (quase)
de osmose, dada a naturalidade no uso de tecnologias no dia a dia.
No mundo empresarial, esta evolução e velocidade de
acontecimentos está um pouco mais atrasada. A maioria dos processos de negócio está
ainda implementada por líderes da Geração X, cujo modelo de raciocínio e de
aprendizagem não foi naturalmente realizado com a tecnologia embebida, isto é, a
receita usada em muitos projetos de Sistemas de Informação continua a ser o de
“onde está o papel, mudar para uma base de dados e usam-se uns formulários”. Ao
invés, deve-se olhar para o processo de raiz, com uma “folha em branco” e
determinar à data de hoje como fazer, com a tecnologia de hoje. O mundo
empresarial está a sofrer alterações, por vezes radicais, de mudança estrutural
elevada, onde o surgimento de uma nova geração empresarial, startups ou
empresas que souberam visionar a transformação, e de líderes tecnológicos está a
criar disrupções no mercado e a trazer velocidade e agilidade incomparavelmente
maiores que a concorrência. Muitas empresas ficarão para trás e muitas pessoas
que não estejam motivadas para a mudança serão afastadas. Este é um dilema
social que não é fácil, nem tem solução direta, onde os trabalhadores mais
velhos estarão (naturalmente) mais desprotegidos.
Portugal tem hoje este cenário integralmente implantado no
seu ecossistema. Tem um setor empresarial formado por 99% de PMEs (PORDATA, 2018)[1],
traduzindo-se muitas vezes em empresas de teor familiar, cuja gestão ainda não é
suportada em tecnologia, nem os seus funcionários têm contacto na empresa com
modelos de gestão tecnológica. Assim, o paradigma da transformação digital em
Portugal passa sobretudo pela transformação dos próprios líderes, que carecem
eles próprios de reciclagem em termos de novas metodologias de gestão
associadas ao uso de Sistemas de Informação ou de passarem a gestão das
empresas às novas gerações, capazes de melhor compreender os fenómenos atuais e
que se avizinham: concorrência nova e disruptiva, cuja velocidade de aquisição
de novos clientes é muito superior e com custos de estrutura e de venda muito
inferiores. E veja-se, por exemplo, o que é a sapataria personalizada na
Baixa-Chiado que vende exclusivamente a quem passa na rua, ou à sua clientela
privada, e a sapataria personalizada Undandy, cujo fator de qualidade é
exatamente o mesmo, mas onde a dimensão potencial do seu mercado é “o mundo”,
com uma estrutura de custos igual ou inferior. De notar, que a transformação
digital está associada com a globalização da economia, multiplicando-se exponencialmente
a quantidade de concorrentes aptos a prestar serviços no nosso país, bem como
de potenciais clientes disponíveis para serem servidos.
As empresa portuguesas capazes de garantir uma agilidade
interna nos seus processos, tendencialmente mais eficientes recorrendo a
tecnologias e reformulação de processos de forma escalável e também modular,
poderão também elas alargar mais os seus horizontes de mercados potenciais de
atuação. Um processo correto de Transformação Digital começa “numa folha em branco”,
sem qualquer constrangimento sobre “o que existe”, nem sobre qualquer
tecnologia. Transformar digitalmente uma empresa é fundir a empresa com novos
modelos de negócio, que podem inclusive ser disruptivos com os usados até
então.
Uma vez mais, a liderança é fundamental, pois a visão é
essencial.
Um CEO desta era de transformação digital, tem hoje de ter
um nível de competências muito mais que as de gestão tradicional, tem de ter
obrigatoriamente um conhecimento tecnológico e de gestão de sistemas de
informação cada vez mais aprofundado, capaz de entender como transforma as suas
visões para um plano de processos de negócio suportados pela tecnologia versus
suportado em técnicos que sabem de tecnologia. Assim, às competências base de
um CEO do século passado juntou-se a competência tecnológica.
Mas, um CEO só realizará a transformação digital na sua
organização, se não se esquecer da competência de liderança essencial, o da
aproximação direta e de motivação aos seus colaboradores. E não basta dar boas
regalias monetárias para garantir produtividade individual e de grupo, é
essencial que saiba dar um propósito efetivo ao que se pretende com a empresa,
e essa partilha de visão, missão e de propósito para a empresa é fundamental também
para garantir o sucesso da transformação digital.
[1]
PORDATA. (2018,
February 8). Pequenas e médias empresas em % do total de empresas: total e por
dimensão. Retrieved August 28, 2018, from
https://www.pordata.pt/Portugal/Pequenas+e+m%c3%a9dias+empresas+em+percentagem+do+total+de+empresas+total+e+por+dimens%c3%a3o-2859
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